Meu pai

Curitiba, 1949, já como deputado estadual.

(texto de Joaquim Cardoso da Silveira Filho) – Joaquim Cardoso da Silveira nasceu nos estertores do século dezenove. Foi em 4 de março de 1891. Quando nasci, em 22 de maio de 1945, ele já estava com exatos cinqüenta e quatro anos. Houve entre nós, portanto, uma larga diferença, mais natural de existir entre avô e neto. Poderia, por essa razão, ter tido para comigo o comportamento leve e condescendente próprio dos avós, adocicado pelo tempo como as frutas bem maduras. A verdade, porém, é que sua austeridade não se atenuou nem com os netos. Foi sempre o mesmo homem rígido, que não sabia rir. No fundo, um tímido. Sorria, e mais nada. As poucas piadas que contávamos para ele, todas do mais respeitável salão, não lhe mereciam mais que um tênue e educado sorriso, que nos desconsertava e inibia novas surtidas.

Acostumei-me a vê-lo compenetrado, como se o tempo inteiro tomado de preocupações e pensamentos sérios. Também ele não se sentia à vontade diante do menino que eu era. Por isso conversávamos pouco e jamais brincamos. Pedia-me coisas, eu as fazia e pronto. Devo-lhe ter perguntado sobre generalidades, sobre um fato ou outro do passado, mas é certo que indaguei muito menos do que deveria.

Havia nele vastidões a narrar e ensinar, mas a distância entre nós não foi superada. Diante dele, era eu todo respeito, incapaz de retorquir-lhe, de discordar, de argumentar o que fosse. Ouvia e calava. E obedecia, sem que houvesse de sua parte qualquer ameaça ou imposição. Nada. Falava, às vezes com alguma irritação ou contrariedade, mas apenas falava, firme e polido, sem recorrer a gritos, senhor completo de suas emoções. E suas palavras, e seus argumentos bem urdidos, desciam-me como leis.

Muitos episódios marcantes de sua vida aconteceram antes de meu nascimento, em 1945. Bastante água já correra. Haviam ficado para trás os tempestuosos dias da Revolução de 1930, quando foi obrigado a deixar o Brasil e viver duros meses exilado no Paraguai. No retorno, enfrentou o tribunal do júri, acusado pela morte de Coriolano de Lima ocorrida em um tiroteio fruto da mesma revolução, e foi absolvido por unanimidade.

Já havia cumprido com brilhantismo mandatos de prefeito de Santo Antônio da Platina. Quando nasci, estava ele, e desde 1940, na disposição de se manter afastado da política, na qual ingressara, nos anos de 1920, pelas mão de Miguel Dias, líder político da região. Retirara-se, queria cuidar de seus negócios, tocar sua lavoura de café, encaminhar a família de muitos filhos. Teria sido mais feliz assim.

Existia nele, porém, o sentimento de dever a cumprir. Por outro lado, o defeito de não saber dizer não. Por isso, se pediam que voltasse à política, e pediam muito, retornou, e em 1949 seguiu para Curitiba para assumir uma cadeira de deputado estadual. Seguimos com ele e fomos morar na rua Dr. Manoel Pedro, 560, no Cabral.

Mais do que nunca, Joaquim Cardoso foi o homem circunspecto e atarefado, em viagens constantes, procurado a toda hora para toda sorte de pedidos. Trabalhava duro como deputado estadual, empenhado em exercer com dignidade e dedicação o mandato popular recebido.

Com Nelson em Curitiba.

É desse tempo a primeira imagem clara que guardo de meu pai, vestido em sóbrios ternos, alguns ainda feitos pela Alfaiataria Copelli, de São Paulo, e de chapéu Cury na cabeça.

Retornamos a Santo Antônio da Platina no início de 1956. Trazíamos a amargura de meu pai não haver conseguido a reeleição. Fora muito bem votado em Santo Antônio da Platina, reduto em que jamais foi batido, mas o número de eleitores do município era insuficiente. Precisava de mais e contou que apoios tidos por certos em municípios como Ribeirão do Pinhal, Nova Fátima e Siqueira Campos fechassem a conta. Faltou pouco, muito pouco, e mais tarde descobrimos algumas traições fatais. Uma delas veio de uma família que freqüentava nossa casa e nossa mesa. Grandes amigos, supunha-se, de inquestionável lealdade. No entanto, nas sombras, haviam trabalhado pedindo votos para outro candidato. Saíam a campo e diziam para os eleitores que “Seu Cardoso já está eleito. O negócio agora é votar no Cavazzani”. Apunhalaram pelas costas.

O pior é que essas coisas aconteceram enquanto meu pai, preso a uma cama – vencido pelo sono da madrugada, rolara com o carro por uma ribanceira perto de Siqueira Campos –, perdia dias irrecuperáveis da campanha eleitoral.

A decepção estava dentro dele, mas não ouvimos de sua boca o lamento que seria natural e, quem sabe, necessário. Eu, aos dez anos, quase onze, também não aferia bem a extensão do estrago e o quanto nossa vida estava mudando. Lembro-me de que viajei no Vanguard apinhado, que trazia até um heróico cachorrinho branco chamado Amigo, feliz por retornar à minha cidade natal. Pouco a conhecia, é verdade, pois a deixara aos quatro anos, mas sentia a força da terra a me chamar. E exultei quando, ao longe, no fundo do horizonte, surgiram os contornos imprecisos da cidade. Pedi então para minha mãe que me beliscasse, para eu ter certeza de que não sonhava.

Minha alegria ingênua e infantil contrapunha-se ao que por certo ia na alma de meu pai. Meses depois ele sofria, em Curitiba, um derrame cerebral. Em estado muito grave, trataram de chamar os familiares. Foram me buscar na escola, à tarde, e no mesmo dia embarcamos num carro de praça e seguimos para a capital. Sentia-me meio alheio, como que não acreditando na gravidade do caso. Mas minhas irmãs choravam e pediam para o chofer andar mais depressa pela estrada ruim. Podia não dar tempo de encontrá-lo com vida e essa possibilidade as aterrorizava.

Sobreviveu aos derrames. Foi um milagre, e tempos depois foi com minha mãe a Aparecida do Norte cumprir promessa que um amigo fizera por ele. Mas ficaram seqüelas. Muitas dores-de-cabeça, principalmente na nuca, que custaram a desaparecer, a memória não foi mais a mesma e a audição iniciou o comprometimento que o amargurou até o fim. Sobrevivera, mas estava combalido. Contudo, não podia parar, e a necessidade o levou de volta à lida rural.

Trabalhando no sítio Taquaralzinho.

Retomou, porém, a resolução que deveria ter mantido desde 1940: afastou-se para sempre da política. Dera à causa pública anos preciosos e sua saúde. Oferecera o melhor de si. Era o bastante. Recomeçava como agricultor na idade e na saúde em que deveria descansar. Essa segunda imagem de meu pai me foi a mais forte. Foi a última. Trabalhava pesado. Costumava sair de casa por volta das quatro e meia, cinco horas da manhã, e lembro-me bem do sono terrível que me torturava todas as vezes em que o acompanhava rumo ao sítio do Taquaralzinho a bordo de um jipe 1951, depois num modelo 1957, azul, e, por último, numa Kombi 62.

O sítio dava trabalho que chegava e eu, o único filho homem morando em casa, não ajudava em nada, a não ser como motorista. Isso me produzia um sentimento de impotência e frustração. E também de culpa. Meu pai, que jamais fora jovem para mim, era agora, ao meu olhar aflito, um homem idoso e vulnerável. Já tivera derrames e o coração o ameaçava. Podia acontecer o pior a qualquer momento. Contemplava as pronunciadas veias de suas mãos queimadas de sol, caminhos azulados que aparentavam querer explodir, e a visão me fazia pensar que suas veias e artérias a qualquer momento poderiam traí-lo de novo.

E meu mundo contaminou-se dessa fragilidade. Nasceu-me assim a angústia do jovem que se sabia um peso a mais no bolso e nas preocupações daquele homem castigado e que parecia caminhar na extremidade dos débeis liames que unem a vida e a morte. A bem da verdade, era um tempo em que meu desempenho escolar estava longe de corresponder ao que ele esperava de mim. E menor me sentia e maior eu o via. Tornou-se imenso para mim. Pesava-me sua coragem. Pesava-me sua honradez. Minhas imperfeições gritavam-me num acusatório inapelável. Ele era o modelo muito difícil de ser alcançado e eu sofria por decepcioná-lo.

Começou aí a se formar minha decisão de sair de casa. Precisava me afastar para tentar crescer um pouco. Falamos a respeito e ele entendeu que minha hora chegara. Acostumara-se a despedidas. Era início de 1963 quando juntei minhas roupas e algumas mudas de cama, fiz a mala e segui. E nem imaginava o quanto a distância faria crescer em mim a admiração por aquele homem notável.

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