Ainda se voava nos aviões DC-3 da Real Aerovias, que, por sinal, patrocinava o programa radiofônico Nas asas da canção, pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, fazia-se a barba com a lâmina Gillette Azul, tomava-se Melhoral contra a dor-de-cabeça, o cuba-libre era preparado com rum Montilla ou Merino, nos cabelos masculinos aplicavam-se brilhantina, óleo e lavanda Glostora, o Jeep Willys reinava absoluto nas estradas esburacadas e poeirentas do interior do Brasil. Tempo dos biscoitos Aymoré, dos sabonetes Eucalol, dos boleros cantados por Gregório Barrios, dos primeiros LPs hi-fi, da brancura Rinso, dos chapéus Cury e Ramenzoni, do Repórter Esso, da revista semanal O Cruzeiro. Começava a era JK.
Esse era 1956. Dele, há muito para recordar. Todavia, uma de minhas lembranças preferidas é o almoço que tivemos no Natal. Os preparativos para a grande reunião familiar começaram dias antes com o sacrifício de um porco. O abate do bicho era, por si só, um acontecimento inesquecível. Não que fosse algo bonito. Não era. Tratava-se, em verdade, de um espetáculo primitivo, em que o matador abraçava firmemente o animal com um dos braços e com a outra mão segurava o punhal de lâmina estreita e pontiaguda.
O porco esperneava, escoiceava loucamente, exigindo muitas vezes o auxílio de mais um ou dois homens para imobilizá-lo. Emitia grunhidos horríveis, agudíssimos, como se soubesse – e penso que sabia — o que estava para lhe acontecer. Então o matador desferia o golpe certeiro em seu coração. O punhal penetrava a tenra carne até o cabo e um risco de sangue tinto como o vinho brotava da perfuração feita pela lâmina de aço, descia sobre a pele escura e pilosa e gotejava tingindo o chão. Não morria de chofre. Estertorava, gritava, e seus gritos agonizantes doíam nos ouvidos e no coração. Até que, lentamente, a vida lhe saía do corpo, os movimentos se atenuavam, o punhal era retirado de seu peito e seus olhos aquosos e tristes se imobilizavam olhando-nos com a derradeira súplica.
Veio muita gente para o almoço, parentes e amigos, e uma fotografia tirada logo depois do nutrido repasto, na larga varanda da casa situada na rua Sete de Setembro, em Santo Antônio da Platina, testemunha isso. Naquele tempo, os idosos me pareciam mais numerosos do que hoje meus olhos condescendentes conseguem contar na fotografia: um casal de velhinhos. Moravam numa casinha modestíssima, de três peças, caiada de branco, construída nos fundos de uma data pertencente à minha família. Na parte da frente do terreno, tio Zeca, que era irmão de meu pai, plantava mandioca e milho, muito mais para consumo próprio.
Tia Fernanda ocupava-se com a lida doméstica, preparando num fogão de taipa comidinhas muito simples, como um arroz papa e feijão em caldo muito ralo, cuidando das gastas roupas do casal e varrendo o pouco que havia a varrer. Teriam, na época, seguramente mais de oitenta anos. Levavam, enfim, uma vida extremamente despojada, sem ambições e sem sonhos, na contagem regressiva para o fim.
Nessas condições, suas almas eram o único bem que realmente lhes importava cuidar. Iam diariamente à Igreja Matriz, caminhando lentamente pelas calçadas, ele apoiado em uma tosca bengala de madeira que fizera usando uma faca, ela apoiando o corpo arqueado no braço do marido, tendo na cabeça, a cobrir-lhe os cabelos muito alvos, um lenço de algodão que nunca retirava. No templo, ajoelhados, orando contritos, banhados pela claridade suave do sol coado pelos vitrais das janelas altas e largas, compunham uma imagem comovedora de fé e entrega. Suponho que, naqueles momentos, estabelecia-se entre os dois velhinhos e o mundo espiritual uma profunda comunhão. E talvez viesse daí o olhar tão calmo e terno, a um só tempo belo e triste, que saía de seus olhos cansados e espremidos pelas pálpebras envelhecidas.
Repleta e envolta pelos eflúvios natalinos, a casa tomou-se de uma alegre balbúrdia. Na cozinha, as mulheres cuidavam de ultimar o almoço em prazerosa azáfama, e a vozearia que vinha de lá podia lembrar um mercado árabe. Por seu turno, os homens, reunidos no amplo quintal, conversavam animadamente e faziam rodar de mão em mão os copos contendo caipirinha preparada com pouca cachaça e muito limão e açúcar, enquanto as crianças corriam por todos os lados e entravam e saíam da casa, em intenso alarido, trazendo nas mãos os brinquedos recebidos de presente.
Quando soou a hora do almoço, da cozinha vieram as mulheres ostentando orgulhosas as travessas com as comidas tão bem preparadas, numa das quais reluzia o pernil de porco assado, cuja pele pururuca, dourada e quebradiça, oferecia-se de modo quase pecaminoso para docemente se fragmentar ao toque dos nossos dentes e derreter em nossas bocas seu sabor gordo e delicioso. Acercamo-nos então da longa mesa aberta no quintal, sob a sombra de uma árvore, contagiados pela fome exacerbada pela visão dos pratos e pela alegria que o Natal punha em nossos corações.
Findo o almoço, os adultos prosseguiram a conversar em torno da grande mesa, enquanto as crianças corriam a retomar os folguedos com seus novos carrinhos, aviões e bonecas. Em meio à tarde, Sinval Martins e Manoel Afonso, mais conhecido como Neco, apareceram para cumprimentar a família. Sinval, naquela altura já morando em Curitiba, envolvera-se com o teatro. Era ator. Por isso, eu o olhava e ouvia querendo perceber em seus gestos e palavras os detalhes que o diferenciavam dos demais presentes à mesa. Afinal, ator teatral era uma profissão insólita para os platinenses de então. Num certo momento, anunciou que iria declamar uma poesia moderna. Preparamo-nos para ouvi-lo. Sinval, empostando a voz e contemplando-nos como o ator contempla a platéia, iniciou:
Quanta laranja madura,
Quanto limão pelo chão,
Quanto sangue derramado,
Caranguejo não tem pescoço.
Rimo-nos da brincadeira, que ele certamente trouxera do meio artístico em que vivia na capital. Depois recitou outra, feita também sem rima e sem sentido, em troça aos ventos modernistas que sopravam. De sua parte, Neco apreciava cantar. Cantor amador, é verdade, mas cantava bem. Não se precisava insistir para que soltasse sua voz de timbre bonito especializada em boleros, e assim nos brindou com algumas canções de seu repertório latino-americano. Ouvindo-o com os cotovelos apoiados na mesa, sonhadoramente imaginei como seria bom se um dia também pudesse cantar daquele jeito suave e romântico, como convinha a um bom cantador de boleros.
Desse modo, a tarde radiosa, clara e quente, ao embalo de conversas amenas e alegres, atravessou as horas e se pôs. À chegada das primeiras sombras da noite pontinhos foram se acendendo no céu, e logo um magnífico manto constelado estendeu-se sobre a cidade. Era hora de se começar a pensar na chegada de 1957.
Observando a fotografia, vê-se que nela não estão o ator e o cantor, que chegaram depois de ela haver sido tirada. Mas estão todos os demais que participaram da reunião memorável. Ali estão os vivos e os mortos. Despedimo-nos pensando no novo encontro que haveríamos de ter no próximo Natal. Não foi assim, contudo. Aquele numeroso grupo não mais se reencontrou. Insondáveis razões da vida determinaram que o grande almoço do Natal de 1956 fosse a despedida de um tempo. É como me recordo dele.