A história do Futebol Recreativo de Mesa

(Cardoso Filho) – Tudo começou em 1941, tendo por cenário o setentrião paranaense. Walter Cardoso da Silveira, então nos seus onze anos, morava em Jacarezinho, em um quarto alugado na casa de dona Zizi de Oliveira. A família residia em Santo Antônio da Platina, na rua Independência, hoje 24 de Maio, e ele, matriculado no Colégio Cristo Rei, dirigido pelos padres Palotinos, iniciava o ginasial. Em sua rotina de estudante, chegava da escola e se enfiava no quarto para estudar, de onde saía quase só para as refeições. Era um cômodo sobriamente mobiliado: cama, uma pequena mesa que servia de escrivaninha, cadeira e um guarda-roupa. Sobre a mesa, costumava dona Zizi estender uma toalha retangular de duas cores: uma metade branca e a outra azul claro.

Terminadas as tarefas escolares do dia, Walter punha-se a bolar distrações para passar o tempo restante. A mais freqüente consistia em brincar sobre a toalha de mesa, como se esta fosse um campo de batalha, cada metade ocupada por um exército feito de feijões ou bolinhas de papel. Tratava-se de um tema muito a propósito, pois a Segunda Grande Guerra, começada em setembro de 1939, estava em curso e Walter preocupava-se em acompanhar pelos jornais a evolução das campanhas militares.

Ocorreu-lhe, certo dia, imaginar que aquela toalha de mesa, tão bem dividida ao meio em duas cores, bem podia ser também um campo de futebol. E, num passe de fantasia, os soldados dos exércitos em luta deixavam as batalhas ou as majestosas paradas e convertiam-se em jogadores. No princípio, Walter pressionava um grão de feijão sobre outro, que espirrava como se chutado. Para traves dos gols, valia-se da parte interna de caixas de fósforos. Os rudimentos de um novo brinquedo começavam a se assentar.

Numa tarde, brincava com os feijões sobre a mesa, quando olhou para a janela do quarto em busca de um pequeno retângulo de céu. Atravessado nesse retângulo, quase imóvel na tarde de pouca brisa, pendia um galho de goiabeira. E lhe veio, num estalo, a idéia de utilizar o galho para fazer os jogadores. Saiu ao quintal, colheu o galho e tratou de cortá-lo em pequenos pedaços. Fez dois times e, para diferenciá-los, pintou um deles com tinta azul de caneta. Surgiam aí os dois primeiros times do Futebol Recreativo de Mesa. Que Walter nem imaginava que estava a criar.

Entusiasta do futebol, que acompanhava pelo rádio torcendo pelo São Paulo e Fluminense, a brincadeira que ia inventando mais e mais tomava suas horas de folga e o empolgava. Os soldadinhos já pouco vinham à mesa. Depois de um certo tempo, o novo brinquedo tomou conta de vez. Já então com jogadores de madeira e bola feita de grão de feijão.

As primeiras regras escritas

Nas férias escolares do final de 1941, Walter chegou em casa animado com a novidade a ser mostrada aos irmãos mais novos, Wilson e Luiz Cardoso da Silveira, que aderiram a ela com entusiasmo. O primeiro campo foi então riscado no verso de um papelão que continha anúncio do analgésico Melhoral, medindo 70cm x 40cm.

Jogando e discutindo a respeito com os irmãos, Walter prosseguiu na invenção do novo brinquedo. Queria que fosse o mais próximo possível do futebol de verdade, por isso assentou o princípio de que suas regras seriam as da Federação Internacional de Futebol Associação – FIFA, apenas com as adaptações indispensáveis. Quando as férias se encerraram, as primeiras regras escritas do Futebol Recreativo de Mesa estavam lavradas, datadas de 1º de janeiro de 1942. Walter retornou a Jacarezinho com a certeza de que passos importantes haviam sido dados para a consolidação do jogo que criara.

Surgem novos times

Não demorou para que dois primeiros times, feitos a partir do galho de goiabeira, se revelassem rústicos demais. Era preciso cuidar de fazer novos times, e os irmãos se puseram a campo. Escolheram madeira mais adequada, mais dura, lixaram os jogadores para lhes dar melhor acabamento e os pintaram, com caneta de pena e tinta de escrever, nas cores dos clubes escolhidos. Surgiram, assim, os primeiros São Paulo, Fluminense, Palmeiras, Flamengo, Corinthians e Botafogo. Também o primitivo campo, desenhado no cartaz de Melhoral, foi substituído pelos campos riscados em cartolina.

Walter continuava estudando fora e só podia aproveitar mais o novo jogo quando vinha para casa nas férias escolares. A cada vinda, percebia os avanços do futebol de mesa. Já outros meninos, como os irmãos Walter e Lourival Mendes de Souza, eram chamados para jogar. Também Nelson Cardoso da Silveira, o irmão pracinha que estivera com a Força Expedicionária Brasileira – FEB na Itália e retornara no início de 1946, entusiasmou-se com o brinquedo e pôs o seu Vasco da Gama em campo.

Mudança para Curitiba

Em 1949, a família mudou-se para Curitiba e foi residir no Cabral, na rua Dr. Manoel Pedro, 560. Walter, que se encontrava estudando na capital, reincorporou-se à casa, e os irmãos, assim reunidos, realizaram os primeiros campeonatos de Futebol Recreativo de Mesa. Que não era assim chamado. Para eles, era ainda simplesmente “o futebolzinho”. Como continuaria a ser na intimidade familiar. Participaram desses primeiros campeonatos, além dos três irmãos, Augusto Avelar, Osmar “Catarina”, Almo França Cardoso e João Paulo Ehrenfried.

Campo em madeira compensada

Os campos riscados em cartolina resistiram até 1954, quando Luiz Cardoso da Silveira, com a engenhosidade que o caracterizava, resolveu dar um novo passo no aperfeiçoamento do futebolzinho.

Comprou uma lâmina de madeira compensada, anilina verde e tinta a óleo branca e pôs as mãos à obra. Logo surgia o novo campo, de um verde cor de grama e demarcado com a tinta branca como se fosse com a cal. Os campos de cartolina, assim aposentados, passaram para a história.

Nessa época, iniciava-se no jogo o irmão mais novo, Joaquim Cardoso da Silveira Filho, tratado por Cardoso, por volta dos seus oito, nove anos.

Volta a Santo Antônio da Platina

Em 1956, a família retornou a Santo Antônio da Platina, mas os irmãos Walter — já então formado em Direito e iniciando sua carreira no Ministério Público paranaense –, Luiz e Wilson não seguiram com ela. Dissolvido o núcleo, parecia que o futebolzinho entrava numa fase de estagnação. Campo e times também haviam acompanhado a mudança.

Mas demorou pouco para que Cardoso o retomasse. Logo foi chamando outros meninos, que rápido se apaixonaram pelo jogo. Vieram, nessa fase, Júlio César Dias Chaves, Édcio Coelho Ribeirette, Paulo César Milani de Moura, Luiz Carlos Patrial, Wesley Vilas Boas, Benedito Cardoso Silveira Júnior, Adelchi de Césaro Filho e Celso Dias de Oliveira. Nos finais da década de 1950 e começo da de 60, vários e inesquecíveis torneios e campeonatos foram disputados. Na empolgação que o futebolzinho lhes despertava, cotizaram-se e confeccionaram mais dois campos e adquiriram cavaletes para apoiá-los, estes necessários porque boa parte dos jogos ocorria ao ar livre, sob a sombra domingueira de um caramanchão florido de primaveras.

Em Curitiba, o grande salto

Em 1963, Luiz e Cardoso voltaram a residir em Curitiba. No ano seguinte, também Adelchi mudou-se para lá. Reunidos os três, e saudosos do futebolzinho, decidiram reavivá-lo. Mais uma vez se comprovaria sua capacidade de sobreviver às infâncias. Desaparecidos os meninos, contaminavam-se os adultos do mesmo gosto de jogá-lo.

Feita a vaquinha para as despesas, Luiz encomendou a madeira para o campo. Desta feita, duas chapas compensadas unidas por uma estrutura também de madeira, que as impedia de empenar. Também providenciou novos times, torneados em madeira marfim: Palmeiras, Botafogo e São Paulo. Na mesma ocasião, propôs outra inovação, aceita de pronto pelo conselho diretor do futebol recreativo de mesa: eliminar as demarcações das posições iniciais dos jogadores em campo, como era até então. A partir daí os jogadores passaram a ser posicionados segundo as opções táticas de cada treinador. O jogo se tornava cada vez melhor.

Luiz, porém, queria mais. Algum tempo depois, tratou de fazer novo campo, desta feita com a novidade de revestir um dos compensados com chapa plástica de cor verde e acabamento fosco, a lembrar gramado. Tratava-se de material melhor e mais durável, não sujeito a umedecer-se nas épocas chuvosas.

Foi também nessa fase que se adotou em definitivo, para uso dos árbitros, um apito de madeira, encontrado em lojas de artigos de caça e pesca, cujo trilo reproduzindo o canto do grilo se prestou de forma admirável para a nova finalidade.

Mas o notável salto que viria a seguir, por volta de 1965, também foi promovido pela criatividade de Luiz Cardoso, então dedicado ao desenho técnico na área da construção civil. Por força do trabalho, conheceu as possibilidades de utilização do acrílico, muito utilizado em cartazes luminosos, e esse fato levou-o a revolucionar o futebolzinho. Colando chapas desse material nas cores desejadas e torneando os blocos nas medidas exatas, fez surgir os jogadores de acrílico, muito superiores e bonitos que os de madeira. Fez mais: substituiu o grão de feijão, utilizado como bola, por bola também de acrílico, na cor branca. Esta, pelo formato e o material que utilizava, permitiu importante evolução técnica ao jogo. Foi realmente um sucesso.

Nessa retomada do futebolzinho, surgiu um jeito de tocar a bola também revolucionário e que se consagraria como dos mais mortíferos para os chutes a gol: o tuplec, denominação retirada ao acaso de um samba bossa-nova então em voga: “Sentado na calçada de canudo e canequinho, tuplec, tuplim…”. Consistia de fazer o jogador tocar na bola mediante um movimento de mão semelhante ao debicar da galinha. Por força do impulso dado desse modo, a bola ascendia, descrevia uma curva encobrindo zagueiros e goleiro e caía sobre o gol adversário. A trajetória da bola assim obtida lembrava a antiga encoberta, que resultava do chute dado com o jogador na posição de uma roda deitada, só que bem mais precisa em razão refinamento técnico do tuplec.

Novos campeonatos

Aos poucos, os irmãos retornavam a Curitiba. Luiz e Cardoso lá já se encontravam. Depois vieram Wilson e Walter, e logo estavam todos, juntamente com Adelchi, jogando sempre que possível no belo campo que Luiz havia feito. Não demorou muito e Walter encomendou um para ter em sua casa e iniciou seu filho Walter Filho, ainda bem pequeno, no aprendizado do fascinante jogo. Também seu cunhado, o hoje médico Wilson Baptista, tomou gosto, passou a jogá-lo com assiduidade e acabou criando um tipo de chute, longo, dado do meio do campo, que foi chamado, pela sonoridade que produzia, de pium. Difícil descrevê-lo, porque resulta muito mais do jeito como se segura o jogador. Wilson o prendia entre três dedos, o polegar, o indicador e o médio, ao invés de fazê-lo só com o polegar e o indicador como parecia, e ainda parece, mais natural. Segurava o jogador desse modo, pressionava-o com bastante força sobre a bola, ia puxando-o para trás e… pium!, partia o petardo de meia altura em direção ao gol adversário. De precisão nem sempre satisfatória, mas temível quando tomava o rumo do gol.

A partir de 1971, novos campeonatos foram organizados e disputados em Curitiba. Participaram deles, além dos irmãos Walter, Wilson, Luiz e Cardoso, Adelchi de Césaro Filho, Felipe Fernandes de Azevedo, Nelson Cardoso da Silveira Filho, Walter Cardoso da Silveira Filho, Fabrício Cardoso da Silveira, Glauco Cardoso da Silveira, Nei José Loenert, Wilson Wilhelm Baptista, Fernando César de Césaro, Guilherme Abramovici Cardoso da Silveira, José Maria Mauad Abujamra, Fábio Cardoso da Silveira e Sosa, Adriano Cardoso da Silveira e Sosa e Adolfo Newton de Sosa.

Folha Noticiosa

Wilson Cardoso da Silveira deixou também, na história do futebolzinho, uma contribuição literária importante. De maio a dezembro de 1990, editou dezenove números da Folha Noticiosa, que, por meio de blagues, muitas em versos rimados de sua autoria, e charges por conta do lápis do arquiteto Fernando César de Césero, contava as emoções do campeonato em disputa. Em cima de cada edição prolongavam-se as brincadeiras e gozações entre os participantes e firmava-se ainda mais a camaradagem entre eles, que era o objetivo daqueles encontros alegres nas tardes de sábado no estádio da Liga do Bigu (chamavam de Liga do Bigu o pessoal que se reunia para jogar na casa de Dora e Adolfo Newton de Sosa, situada no bairro curitibano do Bigorrilho, daí o nome de estádio da Liga do Bigu para o campo que lá havia; por igual razão, diziam Liga do Quité para o pessoal que jogava no campo que Walter Cardoso possuía em casa, no bairro de Santa Quitéria).

Encantamento e prazer

Os muitos que jogaram o futebolzinho ao longo destes anos todos, desde o seu início no distante 1941, encontraram nele um entretenimento inigualável e inesquecível. Vários deles, por razões naturais da vida, afastaram-se dos campos, mas por certo carregam, entre as melhores, as recordações desse jogo empolgante e cheio de fantasia, que tão bem reproduz as emoções do futebol real e encanta, na mesma intensidade, adultos e crianças. Os mais afortunados, estes continuam a jogá-lo, desfrutando em cada lance, nos belos chutes, nos gols, nas grandes defesas, o inesgotável prazer lúdico que o futebolzinho oferece.

Nova geração

Entra em campo, neste começo do terceiro milênio, uma nova geração de adeptos do Futebol Recreativo de Mesa, trazendo em seu meio os netos do fundador Walter Cardoso da Silveira. Esses meninos têm a oportunidade feliz de encontrar hoje, no outro lado do campo, ou no outro lado da mesa, como adversário, em absoluta condição de igualdade, o avô. O mesmo que dirime dúvidas, orienta, ensina que é preciso jogar com esportividade e conta histórias engraçadas. E que, por efeito da mágica que o futebolzinho tão bem realiza, se torna ali, no campo de jogo, uma criança como elas. Ou quase

Veja também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *