Conheci-o já moço, eu ainda uma criança. Aprendi sobre ele vendo-o e ouvindo o que se dizia em casa. Depois, descobri as opiniões que vinham de fora. E fui formando em minha cabeça, com o que via e ouvia, a imagem de Dudu. A do irmão e a do homem. E ao longo de sua vida pude apreciar-lhe as muitas virtudes.
Nascido na pequena Santana do Itararé, em março de 1918, quarto filho de uma numerosa prole, Benedito Cardoso da Silveira, que a cidade aprendeu a conhecer como Dudu Cardoso, veio para Santo Antônio da Platina ainda menino, em 1925. Logo tornou-se órfão de mãe, e a partir de então passou a cultivar em relação ao pai Joaquim Cardoso da Silveira uma singular relação de afeto e compreensão.
Poucos filhos terão a felicidade de viver essa experiência com a mesma intensidade. Era bonito de se ver filho e pai tão próximos e solidários. Estiveram permanentemente lado a lado e apoiaram-se mutuamente nas mais variadas circunstâncias. E toda vez que falava sobre o pai, seus olhos úmidos traíam-lhe a emoção. Essa ligação durou até a morte do amigo maior, em outubro de 1977.
A partir daí, sem o conselheiro e mestre da vida, passou os anos que lhe restaram em veneração à sua memória, e é bem possível que em nenhum dia tenha deixado de lembrá-lo. O pai, retratado em uma pintura pendurada na parede do escritório, continuou a fazer-lhe companhia. E até nos últimos lampejos de vida, evocou seu nome.
Em 1943, casou-se com Doroty Milani, uma moça muito bonita que aportou na cidade vinda das Minas Gerais. Com ela viveu até morrer. E Dudu amou-a da forma mais resoluta, sem nenhuma dúvida, num querer definitivo e total, e foi amado em igual intensidade. Dessa união vieram quatro filhos, aos quais dedicou uma paternidade protetora, amorosa, compreensiva e conselheira. Repetiu em relação eles o modo de agir e educar aprendido do pai. E deu certo, porque todos cresceram bem criados, e três deles bacharelam-se em Direito e foram integrar sua banca de advocacia.
Dudu, o brilhante e circunspecto advogado, extremamente polido, de modos elegantes e fidalgos, não deixava entrever que fora na juventude um rapaz brincalhão, que apreciava bailes, principalmente os de Carnaval.
Em álbuns de família, velhas fotos revelam-no participando da folia, na companhia da jovem esposa, ambos integrando um bloco carnavalesco. Depois, aos poucos, em sua banca de advocacia, foi incorporando a discrição e o comedimento que se tornaram uma de suas marcas.
Ponderado no agir e no falar, estudioso das leis e tratados jurídicos, incansável, valoroso e leal nas batalhas travadas nos tribunais e rigorosamente ético no tratamento dos clientes e suas causas, rapidamente notabilizou-se como profissional competente e muito respeitado.
Mas, por determinados momentos, deixou a advocacia um pouco de lado e envolveu-se com a política. Chegou a transferir-se para Curitiba no começo dos anos sessenta, no início do governo de Ney Braga, para ocupar a chefia da Casa Civil.
Voltou a Santo Antônio da Platina algum tempo depois, rendido às ponderações do pai de que a banca de advocacia, de que tanto gostava, precisava de sua presença. Ademais, o terreno escorregadio da política, em que a conveniência frequentemente sobrepõe-se à justiça, revelava-se impróprio para a retidão de seu espírito.
Palavrão em sua boca teria valido muito. É que não os utilizava. Não me recordo de vê-lo proferir um impropério. Parecia possuir uma paciência infinita, a de um monge iluminado, tal a capacidade de manter a compostura, mesmo em situações em que a explosão se justificasse. Preservava-se calmo, dono de suas emoções, falava serenamente, repreendia, elogiava, considerava, ensinava. No mesmo tom. Quando muito, se podia surpreender em sua fisionomia algum traço de irritação. Sabia-se, então, que seu aborrecimento era profundo. Mas, mesmo aí, o palavrão não lhe saía da boca. Recusava-o, negava-se o direito de xingar.
Talvez não precisasse mesmo, porque a disciplina do espírito, longamente cultivada, o fez reflexivo e ponderado, dono completo de sua vontade e dos seus atos Essa característica de homem comedido não o impediu, todavia, de ter sido alegre, muito afável, de riso fácil. Era dono de uma presença que trazia bons eflúvios. Chegava ele e as nuvens passavam. Tinha esse dom misterioso e místico.
Não foi à toa que a sua religiosidade cresceu com o tempo, como uma árvore. Cada vez maior, com mais folhas e mais frutos. Podia-se chegar a ele e contar as aflições, que era certo encontrar nele as palavras calmas e balsâmicas. Não se colocava como juiz. Ouvia, refletia, buscava no espírito sereno a melhor palavra e a dizia com seu inefável sorriso.
Também foi generoso e solidário com os desvalidos. Fez o que podia para atenuar suas dores e dificuldades. A morte colheu-o na madrugada de 18 de abril de 2003, Sexta-Feira Santa. Epílogo de oitenta e cinco anos de vida.
Costuma-se julgar os mortos com a condescendência de diminuir-lhes os erros e aumentar-lhes as virtudes. A propósito de Dudu, a condescendência é dispensável. Fez da vida um exemplo bom. Como filho, como irmão dos irmãos em Deus e em sangue, como marido, como pai, como advogado, em todos esses planos saiu-se exemplarmente bem.
Não se saberá se teve ele, no último alento, no grandioso momento em que o espírito se despede, a consciência de que realizou o melhor. De que dignificou a condição humana. Mas essa verdade já a sabíamos muito antes que a morte lhe viesse. Por isso, orgulhosamente, foi conduzido e entregue à terra platinense.
(Texto publicado na edição 732, de 30 de abril de 2003, na Tribuna Platinense)